terça-feira, 23 de setembro de 2008

Olhos cheios de infância (António Lobo Antunes)

São sete horas da tarde e as árvores começam a agitar-se no ventinho que antecede a noite. Vejo-as lá em cima, por uma fresta muito alta da janela do atelier: movem-se, descansam por um instante, tornam a mover-se: há mãos assim aflitas, sem destino, cheias de dedos, à procura. Não cinco dedos, dez, quinze, vinte e três, muitos. Os sons mudam de tonalidade, as vozes das pessoas que estão perto afiguram-se-me distantes, as vozes das pessoas no quarteirão a seguir oiço-as tão nítidas, tão vizinhas de mim, cada inflexão, cada sílaba, cada vogal. Um menino salta ao pé coxinho num degrau, a mulher do merceeiro vai recolhendo os caixotes. O manco do costume bebe um bagaço no balcão minúsculo, de mindinho espetado. Avança o pescoço para o cálice, de palma na gravata, os lábios aproximam-se do vidro num biquinho de beijo. Nos intervalos do bagaço olha a prateleira dos pêssegos num vagar rancoroso, de sapato aleijado no ar, à espera. caminha para casa a pilotar uma trotinete invisível. O menino que salta ao pé coxinho imita-o e o manco, pelo canto do bigode
- Vai gozar com a tua mãe, meu cabrão
enquanto as árvores continuam a agitar-se. A semana passada, ao entrar na mercearia para comprar cigarros, o manco declarava em torno, a poisar o bagaço
- Eu também sou pai
enquanto o merceeiro ia concordando com ele. Mal deram por mim calaram-se num retraimento ofendido. Os pêssegos da prateleira aguardavam que me fosse embora para recomeçar a conversa. Se calhar também eram pais. Às vezes trago pastilhas elásticas na esperança de fumar menos, a mulher do merceeiro previne-me
- Uma cunhada minha apanhou os diabetes nas pastilhas
o merceeiro manda-a calar com os olhos, o manco odeia-me mal forneço metade dos diabetes ao menino que salta ao pé coxinho no degrau
- Esse cabrão há-de acabar a roubar carros
A partir da hora do jantar, quando não se distingue o ventinho nas árvores, a Rua Gonçalves Crespo recebe um pelotão de travestis e raparigas da vida. Discutem encostadas aos automóveis, compõem malhas das meias com uma falangeta de cuspo, tropeça-se no perfume como num obstáculo sólido. Algumas têm olhos cheios de infância por trás da pintura. Marcas de agulhas nos braços magros que coçam as comichões da heroína, calcanhares que vacilam nos tacões. Um chofer de táxi parlamenta com um travesti de nádegas ao léu e cabeleira tão platinada que encandeia. Pensando melhor ninguém tem olhos cheios de infância por trás da pintura, sou eu que sou parvo. Ninguém tem olhos de nada. Existem olhos apenas e acabou-se. Aqueles que me observam na Rua Gonçalves Crespo
ou nem observam, avaliam
são duros e secos. De madeira que a droga apodreceu por dentro e vai roendo, roendo. Qual infância! A infância é um luxo de quem possui tempo para a ter tido, uma saudade retrospectiva e enternecida de quando não há fome. Algo que a gente inventa e não houve. Houve medos, Natais, adultos dando ordens
- Endireita-te
- É o garfo que vai à boca não é a boca que vai ao garfo
- Espera que os crescidos se sirvam.
Houve crescidos. Ao chegar a minha altura de crescer dei-me conta que eram umas pobres criaturas indecisas. O chofer cospe com competência, interessado nas nádegas do travesti, hesita, decide-se, volta a hesitar: uma pobre criatura indecisa. Por um segundo o ventinho lembra-se das árvores. Há séculos que o merceeiro colocou os taipais. Uma das raparigas retira um pedaço de tubo da mala e mostra-o às colegas. Um tubo enferrujado, uma sobra de cano:
- À segunda vez que lhe dei com isto na barriga amansou logo.
Olhos cheios de infância, uma treta: olhos de bicho que medem, recusam, se defendem. O serviço faz-se ali mesmo, num tapume, numa entrada aberta de rés-do-chão, com o tubozinho a jeito. Onde estará o manco a esta hora?
Se eu voltasse à mercearia não dava com os pêssegos, algures na loja às escuras, a insistirem em coro:
- Eu também sou pai.
Lábios em biquinho de beijo, mindinhos educados, sapatos aleijados no ar. Um casal de velhos remexe caixotes com a muleta. Escreve lá que os olhos deles cheios de infância, meu camelo. À segunda vez que lhe dei com isto na barriga amansou logo. A velha encontrou um bocado de cartão e examina-o com desprezo. Não notam as raparigas sequer. Ninguém vê ninguém: olhos cheios de nada. Tive infância, fui feliz, os crescidos tratavam-me bem. Volta para o atelier: na fresta muito alta da janela um quadrado ou um triângulo preto. Mais nada. Somente o quadrado ou triângulo preto e tu inclinado para a mesa, a escreveres. Escreve olhos cheios de infância, anda. Assim como assim talvez te ajude a viver.
António Lobo Antunes, "Segundo Livro de Crónicas", Dom Quixote, 2002

1 comentário:

Joroncas disse...

Admiradores, apreciadores, amantes, dependentes, tarados por ALO, uni-vos!