terça-feira, 23 de setembro de 2014

O Outono na poesia de Eugénio de Andrade

Claude Monet


DESPEDIDA DO OUTONO

Eu já ouvira o apelo do tordo
junto às águas velhas
do rio, ou na luz vidrada
das lentas oliveiras do sul.
Pensava então que não podia morrer
quem tanto amou

o claro timbre das vogais
trazidas pelo mar - o outono,
esse morria nas chamas

altas dos castanheiros,
na sonâmbula ondulação
dos rebanhos, nos olhos das mulheres

de coração fatigado,
semelhantes a ramos partidos
- elas, que foram irmãs do orvalho.

In "Os Lugares do Lume"



SE DESTE OUTONO

Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.

In "O Sal da Língua"



O ESPÍRITO DO OUTONO

Terei de falar do espírito do outono
agora que setembro
chegou ao fim. (Espírito
é palavra suspeita: não há
hipócrita que não se abrigue
à sua sombra.) Será
a embriaguez? O vento matinal
arrastando folhas
raparigas canções?
O sopro frio das estrelas?
Será a beleza,
o espírito do outono? Há um limite
para o homem, um limite
para suportar o peso do mundo.
Da beleza, da bárbara
orgulhosa beleza, quem sabe defender-se
sem medo do coração lhe rebentar?

In "O Sal da Língua"


LUGARES DO OUTONO

Outono, labirinto de silvas,
de sílabas, digo: pupila lenta,
rio de inumeráveis águas
e de amieiros onde canta
a derradeira luz das cigarras,
de vidro ainda, e leve, e branca.

In "Cumplicidades do Verão"


OUTONO

O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.

In "Cumplicidades do Verão"