sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Sobre a privacidade * (Umberto Eco)

A mim parece-me que uma das grandes tragédias da sociedade de massas, a sociedade da imprensa escrita, da televisão e da Internet, é a renúncia voluntária à reserva da privacidade. O cúmulo desta renúncia à privacidade (e como tal ao próprio pudor) é - no limite do foro patológico - o exibicionismo. Ora, a mim parece-me paradoxal que alguém tenha de lutar pelo direito à defesa da vida privada numa sociedade de exibicionistas.
Outra das tragédias sociais do nosso tempo foi a transformação da tradicional, e em larga medida benéfica, válvula de escape que era o mexerico.
O mexerico clássico, típico das aldeias, das conversas de café ou com a porteira, era um elemento de coesão social. Não corria nenhum mexerico que dissesse que fulano era saudável, feliz e que tinha sido bafejado pela sorte; mas havia imensos mexericos sobre os defeitos, os erros e as infelicidades alheias. Quem contava um mexerico acabava por participar nas desventuras do visado (porque o mexerico nem sempre inspira desprezo, pode muito bem levar-nos a sentir compaixão). Mas o mexerico só funcionava quando as vítimas não estavam presentes e não sabiam o que se dizia a seu respeito (ou pelo menos enquanto ainda lhes restava a hipótese de salvar as aparências, fazendo de conta que não sabiam). Quando a vítima descobria o mexerico e deixava de poder fingir que não sabia de nada, vinha o momento da peixeirada ("ó minha grande coscuvilheira, sei que andas a dizer por aí que eu..."). Passada a peixeirada, a notícia tornava-se pública. A vítima era exposta ao ridículo ou à reprovação social e os seus verdugos deixavam de ter motivo para continuarem a alimentar conversas a seu respeito. Para que este ciclo se completasse e para que o valor social do mexerico como válvula de escape se mantivesse intacto, era forçoso que todos, verdugos e vítimas, conservassem, dentro da medida do possível, uma parte do segredo.
Devemos à imprensa a primeira manifestação daquilo a que doravante chamaremos o mexerico moderno. Antigamente, havia publicações especializadas em mexericos sobre pessoas que, devido à sua profissão (actores e actrizes, cantores, monarcas no exílio, playboys) se expunham voluntariamente aos fotógrafos e jornalistas. O jogo entre as duas partes era tão descarado que os leitores sabiam perfeitamente que quando o actor x era fotografado no restaurante com a actriz y, isso não significava necessariamente que entre os dois houvesse qualquer espécie de "afectuosa amizade", e que o mais provável era terem sido os agentes de ambos a combinarem o encontro. Mas os leitores destas publicações não pediam a verdade, queriam era algum divertimento e nada mais.
Para poder competir com a televisão, e em parte também para conseguir encher um número bastante elevado de páginas e aproveitar os espaços da publicidade, a chamada imprensa séria teve de concentrar-se cada vez com maior frequência nos eventos sociais e nas modas, nas variedades, nos boatos e, acima de tudo, quando não tinha notícias novas, viu-se forçada a inventá-las. Inventar uma notícia não é o mesmo que escrever sobre um evento que nunca aconteceu; trata-se é de converter em notícia o que antes não era, a frase que escapou dos lábios de um político durante as férias, as últimas novidades do mundo do espectáculo. O mexerico passou assim a ser matéria de informação generalizada, alargando-se inclusivamente a domínios que tradicionalmente eram um exclusivo da imprensa cor-de-rosa, como os casos das famílias reais, dos líderes políticos e religiosos, dos presidentes da República, dos cientistas.
Nesta primeira fase da transformação, o mexerico deixou de ser sussurrado para passar a ser gritado, conhecido pelas vítimas, pelos verdugos e ainda por muita gente que não tinha o mínimo interesse em conhecê-lo. Perdeu o fascínio e a força do segredo. Mas em compensação proporcionou-nos uma nova imagem da vítima: já não é aquela pessoa de quem temos pena, porque agora ela é vítima na exacta medida em que é famosa. Ser objecto de um mexerico (público) converteu-se pouco a pouco num símbolo de status social.
Foi então que chegámos a uma segunda fase, quando a televisão inventou os programas em que já não eram os verdugos a lançar mexericos sobre as vítimas, mas as próprias vítimas que iam ao programa contar mexericos sobre si mesmas, esperando alcançar deste modo o status do actor ou do político. No mexerico televisivo não se diz mal de quem não está presente: é a vítima que fala de si e das suas histórias íntimas. Os objectos do mexerico são os primeiros a saber, e toda a gente sabe que eles sabem. Não são vítimas de nenhuma espécie de maledicência. Não há nenhum segredo. Nem sequer podemos dizer mal das vítimas, porque elas tiveram a coragem de se tornar verdugos de si mesmas ao exporem as suas fraquezas, nem podemos sentir pena delas, porque a confissão lhes proporciona uma vantagem invejável, a exposição pública. O mexerico perdeu assim a sua natureza de válvula social, para se converter em exibição inútil.
Esta prática começou muito antes de programas como o Big Brother, que não fazem mais do que condenar ao voyeurismo nacional personagens cuja decisão de participar em reality shows as coloca na lista das pessoas que - está à vista de quem quiser ver - precisam de ir rapidamente ao psicólogo. Já muito antes, quando ninguém as classificaria como pessoas psicologicamente instáveis, estas personagens apareciam na televisão a discutir com o cônjuge as mútuas facadas no matrimónio, a discutir com a sogra, a gritar desesperadamente o nome do amado ou da amada que os tinha abandonado, a darem bofetadas uns aos outros em público, ou a encenar casos de divórcios em que os intervenientes analisavam impiedosamente as suas incapacidades sexuais.
Se houve um tempo em que a vida privada era tão secreta que o segredo dos segredos era por definição o do confessor, agora foi a noção de confissão que mudou radicalmente de significado.
Mas ainda havia espaço para as coisas piorarem. Como os homens e as mulheres que expunham de forma vergonhosa a sua intimidade conseguiam divertir o público, ao mesmo tempo que satisfaziam a sua necessidade de serem vistos, resolveu-se condenar igualmente à exposição pública aquele que antigamente era conhecido como "O Idiota" e a quem hoje - com um understatement de sabor bíblico, e em sinal de respeito pela sua infelicidade - vou chamar o Insipiente.
O insipiente de antigamente era aquele indivíduo pouco favorecido pela mãe natureza, quer do ponto de vista físico quer do ponto de vista intelectual, que costumava frequentar a tasca da aldeia, onde os seus cruéis conterrâneos lhe ofereciam bebidas para o embriagar e o levar a fazer coisas inconvenientes e ordinárias. Recordemos que nessas aldeias o insipiente tinha uma vaga ideia de que o estavam a tratar como insipiente, mas alinhava no jogo porque era uma maneira de beber à borla e porque fazia parte da sua insipiência uma certa dose de exibicionismo.
O insipiente hodierno, da aldeia global que é a televisão, não é um indivíduo mediano, como o marido que aparece no ecrã a acusar a mulher de lhe ser infiel. É um indivíduo que está acima da média. Convidam-no para participar nos talk shows e nos concursos, precisamente porque é insipiente. Porém, o insipiente televisivo não é necessariamente um atrasado. Pode ser um espírito bizarro (como o descobridor da Arca Perdida ou o inventor de um novo sistema para o movimento perpétuo, que durante anos bateu à porta de todos os registos de patentes e de todos os jornais, e que finalmente encontra alguém que o leva a sério); pode também ser um escritor de trazer por casa que todos os editores se recusaram a publicar, mas que percebeu que mais eficaz do que escrever uma obra-prima era baixar as calças em directo na televisão e dizer palavrões durante os debates culturais; ou pode ser a bas-bleu da província que encontrou finalmente um político que se dispõe a ouvi-la soletrar umas quantas palavras difíceis a propósito das suas experiências extra-sensoriais.
Antigamente, quando os clientes da tasca faziam o insipiente ultrapassar o limite do tolerável, intervinha o presidente da junta, o farmacêutico, um amigo da família, que agarrava no desgraçado e o levava a casa. Hoje, pelo contrário, ninguém leva o insipiente da aldeia global da televisão para casa, nem ninguém o protege, e o insipiente passa a desempenhar um papel semelhante ao do gladiador, condenado à morte para agradar à multidão. A sociedade, que protege o suicida da sua trágica decisão, ou o drogado do desejo que o iria conduzir à morte, não protege o insipiente televisivo; antes pelo contrário, encoraja-o, tal como antigamente se encorajavam os anões e as mulheres com pêlos a exibirem-se nos parques de diversões.
Neste último caso estávamos a falar de um crime, e no entanto não é a salvaguarda do insipiente o que mais me preocupa (mas devia existir uma autoridade competente para estes casos, visto que estamos a falar de abuso de incapazes): é o facto de o insipiente, glorificado pela sua presença no pequeno ecrã, se estar a converter num modelo universal. Se ele conseguiu expor-se, então qualquer pessoa pode fazê-lo. A exibição do insipiente convence o público de que nada, nem sequer a mais vergonhosa das desgraças, tem o direito a permanecer na esfera do privado, e de que a exibição da deformidade compensa, premeia o seu autor. A dinâmica das audiências faz com que mal o insipiente aparece na televisão passe a ser um insipiente famoso, e esta fama mede-se através dos convites para fazer publicidade, dos convites para festas e reuniões, às vezes até pelas ofertas de serviços sexuais (Victor Hugo já nos havia ensinado que uma bela dama pode perder a cabeça pelo Homem que Ri). O conceito de deformidade deforma-se e tudo passa a ser bonito, até a própria malformação, desde que seja elevada à glória do pequeno ecrã.
Lembram-se das palavras da Bíblia? Dixit insipiens in corde suo: Deus non est. O insipiente televisivo afirma orgulhosamente: Ego sum.
Também na Internet se tem verificado um fenómeno análogo ao anterior. Quem está familiarizado com as home pages, ter-se-á dado conta de que a maior parte delas foi construída com o intento único de exibir a sua miserável normalidade, quando não se trata mesmo de anormalidade.
Há uns tempos encontrei a home page de um senhor que mostrava, e talvez ainda mostre, uma fotografia do seu cólon. Como é do conhecimento geral, há já bastante tempo que é possível ir a uma clínica e fazer um exame ao recto: há uma sonda encabeçada por uma pequena telecâmara, que permite ao paciente acompanhar num ecrã a cores a viagem da sonda (e da telecâmara) pelas suas partes mais recônditas. Alguns dias depois, o médico costuma entregar ao paciente (o mais reservadamente possível) um relatório com a fotografia a cores do seu cólon.
O problema é que os cólons dos seres humanos (excepto nos casos de tumores em estado terminal) são todos iguais. Por isso, por muito que alguém possa ter o maior interesse numa fotografia a cores do seu próprio cólon, a fotografia do de uma outra pessoa não lhe serve para nada. Pois bem, o senhor em questão deu-se ao trabalho de instalar uma home page para mostrar a toda a gente a fotografia do seu cólon. Trata-se evidentemente de alguém a quem a vida nada deu, nem um herdeiro a quem transmitir o nome, nem uma mulher que se interesse pelo seu rosto, nem amigos a quem mostrar as fotografias de férias, e que como tal se agarra a esta última, desesperada exibição, esperando obter um mínimo de visibilidade. Neste, como noutros casos de renúncia voluntária à privacidade, jazem abismos de desespero que nos deveriam inspirar uma compadecida desatenção. Mas o exibicionismo (tal é o seu drama) não permite que ignoremos a sua vergonha.
Podia fornecer-vos uma lista de outros casos em que assistimos a uma alegre e despreocupada renúncia à privacidade. Os milhares de pessoas que ouvimos na rua, no restaurante ou no comboio, discutindo ao telemóvel os seus assuntos privados, ou aquelas que encenam tragédias amorosas via satélite, não o fazem por nenhuma necessidade urgente de comunicar uma coisa importante, porque caso contrário falariam em voz baixa, esforçando-se por conservar o seu segredo. Estão é ansiosas por que toda a gente que as rodeia saiba que são elas que tomam as decisões importantes numa empresa de refrigeração, que compram e vendem acções na Bolsa, que organizam congressos, que o namorado as deixou. Gastaram dinheiro num telemóvel e pagam contas astronómicas para poderem exibir a sua vida privada à frente de toda a gente.
Não foi por divertimento que me entretive com este apanhado de pequenas e grandes teratologias psicológicas e morais. Fi-lo porque acredito que as autoridades que zelam pela nossa privacidade não têm o dever de proteger apenas aqueles que querem ser protegidos, mas também o dever de zelar pelos interesses daqueles que já não conseguem proteger-se.
Aliás, gostaria de sublinhar que o comportamento dos exibicionistas é precisamente o mais sério indicador de que os ataques à privacidade se podem vir a tornar não só num crime, mas num verdadeiro cancro social. As crianças deveriam ser as primeiras a ser educadas, para que mais tarde não sigam o mau exemplo dos pais.
Entretanto, vai-se criando um círculo vicioso. A compressão da privacidade habitua as pessoas à ideia de que ela vai acabando a pouco e pouco, até desaparecer por completo. Já há muita gente que pensa que a melhor maneira de manter um segredo é torná-lo público, de modo que escreve e-mails ou faz telefonemas em que diz tudo o que tem a dizer, porque nenhum interceptador vai prestar atenção a uma afirmação que não pareça ter sido camuflada. A pouco e pouco, as pessoas tornam-se exibicionistas porque compreendem que já nada é privado - e quando nada é privado, nenhum comportamento pode ser escandaloso. E lentamente, os indivíduos que atentam contra a nossa privacidade vão-se convencendo de que as vítimas consentem a sua intromissão, e já não haverá nada que os faça parar.

Umberto Eco, "A Perda da Privacidade", in "A Passo de Caranguejo", Difel, 2007

* O título do excerto é da minha responsabilidade

Sem comentários: