domingo, 2 de outubro de 2011

Eduardo Galeano - Os ninguéns

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não choveu ontem, nem hoje, nem choverá amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos.
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Italo Calvino - O seio nu

O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitária. Encontra poucos banhistas. Uma mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. Sabe que em semelhantes circunstâncias, quando um desconhecido se aproxima, as mulheres, geralmente, apressam-se a cobrir-se, e isso não lhe parece bem: porque é aborrecido para a banhista que apanha sol tranquilamente; porque o homem que passa sente que importuna; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; porque as convenções não inteiramente respeitadas propagam a insegurança e a incoerência no comportamento, em vez da liberdade e da franqueza.
Por isso, assim que vê aparecer à distância a nuvem brônzeo-rósea de um torso nu feminino, apressa-se a colocar a cabeça de molde a que a trajectória do seu olhar permaneça suspensa no vazio, como garante do seu respeito cívico pela fronteira invisível que circunda as pessoas.
No entanto - pensa ele continuando a caminhar e, mal o horizonte se encontra desocupado, retomando o livre movimento do globo ocular - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito, o qual, a julgar pelo reflexo que dele chegou aos confins do meu campo visual, me pareceu fresco e agradável à vista. Em suma, o meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.
Regressando do seu passeio, Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí está - reflecte ele satisfeito consigo próprio, prosseguindo a sua caminhada - consegui fazer com que o seio fosse completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo.
Mas será verdadeiramente justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou não será isso rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, considerá-la um objecto e, o que é ainda pior, considerar como um objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até aflorar a pele tensa, recua, como que avaliando com um ligeiro arrepio a consistência diferente da visão e o valor especial que ela adquire, e fica por um momento a pairar no ar, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distância, de uma forma evasiva mas simultaneamente protectora, para depois retomar o seu curso, como se nada se tivesse passado.
Creio que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser entendido como uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que ele significa, colocando-o, de algum modo, à parte, à margem, ou entre parêntesis? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por séculos de pudicícia sexo-maníaca e de pecado de concupiscência...
Semelhante interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar que, apesar de pertencer a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino era asociada à ideia de intimidade amorosa, aplaude no entanto esta mudança nos usos e costumes, quer pelo que ela significa como reflexo de uma mentalidade mais aberta, quer porque uma tal visão lhe é particularmente grata. É esse apoio desinteressado que ele gostaria de poder exprimir no seu olhar.
Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial atenção, mas apressar-se-á a considerá-los como parte de um arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as núvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes aureolados.
Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista solitária e para desembaraçar o ambiente de ilações deslocadas. Mas assim que ele volta a aproximar-se, ei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O peso-morto de uma tradição de maus-costumes não permite que se apreciem com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.
Italo Calvino, Palomar

domingo, 30 de janeiro de 2011