terça-feira, 30 de setembro de 2008

Guichê/3 (Alexandre O' Neill)


Dum cutelo-guichê sem higiafone
senti o frio na nuca e, por broma, imaginei-me na nuca de Antonieta
(referência cultural como qualquer outra).
Dar o pescoço e nem por aférese perder a cabeça
não é para todos quando nos burocratas.
Das doze e trinta às catorze e trinta
estive garrotado e encimado por um letreiro: ENCERRADO.
Estiquei a língua para um frasco de cola,
mas só a mosca dos tinteiros nele arriscava duas das patas.
Meditei (que fazer?) a gasta superfície do balcão
e, português derrotado, pensei:
"Onde veio parar a madeira das naus!"
O tempo demorava a passar como aquela estúpida reflexão
e eu, de grossa língua seca, sentia as ardências todas
do nauta que tragou meia barrica de sardinha.
Das mãos fiz passarinhos cegos contra o vidro,
baquetas ruflando a minha impaciência,
aranhas passeando o que me restava de pescoço.
"Vou pôr-me todo nos olhos, que os olhos salvam!"
e pela ponte pênsil dum olhar passei para o relógio,
que adiantei meia discreta hora.
Do mostrador alcancei uma flor num copo.
Com ela devaneei numa lapela imaginária,
mas o passeio não deu para mais nada.
Tocou a campainha e um contínuo entrou.
"Que faz aqui o senhor? O expediente ainda está encerrado!",
praguejou o contínuo e, dando meia volta,
correu a chamar o general dos contínuos.
Este veio. Passou-me revista. Não se dignou falar-me.
Ainda hoje gostava de saber porquê.
Às catorze e trinta (três pela minha hora)
uma funcionária aproximou-se do guichê,
levantou o cutelo que me sujeitava,
retirou o letreiro e (até amável!) perguntou-me:
"O senhor o que deseja?"
E era, à beira-guichê, como se não tivesse acontecido nada.
Alexandre O' Neill, "Poesias completas", Assírio & Alvim

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Sobre a privacidade * (Umberto Eco)

A mim parece-me que uma das grandes tragédias da sociedade de massas, a sociedade da imprensa escrita, da televisão e da Internet, é a renúncia voluntária à reserva da privacidade. O cúmulo desta renúncia à privacidade (e como tal ao próprio pudor) é - no limite do foro patológico - o exibicionismo. Ora, a mim parece-me paradoxal que alguém tenha de lutar pelo direito à defesa da vida privada numa sociedade de exibicionistas.
Outra das tragédias sociais do nosso tempo foi a transformação da tradicional, e em larga medida benéfica, válvula de escape que era o mexerico.
O mexerico clássico, típico das aldeias, das conversas de café ou com a porteira, era um elemento de coesão social. Não corria nenhum mexerico que dissesse que fulano era saudável, feliz e que tinha sido bafejado pela sorte; mas havia imensos mexericos sobre os defeitos, os erros e as infelicidades alheias. Quem contava um mexerico acabava por participar nas desventuras do visado (porque o mexerico nem sempre inspira desprezo, pode muito bem levar-nos a sentir compaixão). Mas o mexerico só funcionava quando as vítimas não estavam presentes e não sabiam o que se dizia a seu respeito (ou pelo menos enquanto ainda lhes restava a hipótese de salvar as aparências, fazendo de conta que não sabiam). Quando a vítima descobria o mexerico e deixava de poder fingir que não sabia de nada, vinha o momento da peixeirada ("ó minha grande coscuvilheira, sei que andas a dizer por aí que eu..."). Passada a peixeirada, a notícia tornava-se pública. A vítima era exposta ao ridículo ou à reprovação social e os seus verdugos deixavam de ter motivo para continuarem a alimentar conversas a seu respeito. Para que este ciclo se completasse e para que o valor social do mexerico como válvula de escape se mantivesse intacto, era forçoso que todos, verdugos e vítimas, conservassem, dentro da medida do possível, uma parte do segredo.
Devemos à imprensa a primeira manifestação daquilo a que doravante chamaremos o mexerico moderno. Antigamente, havia publicações especializadas em mexericos sobre pessoas que, devido à sua profissão (actores e actrizes, cantores, monarcas no exílio, playboys) se expunham voluntariamente aos fotógrafos e jornalistas. O jogo entre as duas partes era tão descarado que os leitores sabiam perfeitamente que quando o actor x era fotografado no restaurante com a actriz y, isso não significava necessariamente que entre os dois houvesse qualquer espécie de "afectuosa amizade", e que o mais provável era terem sido os agentes de ambos a combinarem o encontro. Mas os leitores destas publicações não pediam a verdade, queriam era algum divertimento e nada mais.
Para poder competir com a televisão, e em parte também para conseguir encher um número bastante elevado de páginas e aproveitar os espaços da publicidade, a chamada imprensa séria teve de concentrar-se cada vez com maior frequência nos eventos sociais e nas modas, nas variedades, nos boatos e, acima de tudo, quando não tinha notícias novas, viu-se forçada a inventá-las. Inventar uma notícia não é o mesmo que escrever sobre um evento que nunca aconteceu; trata-se é de converter em notícia o que antes não era, a frase que escapou dos lábios de um político durante as férias, as últimas novidades do mundo do espectáculo. O mexerico passou assim a ser matéria de informação generalizada, alargando-se inclusivamente a domínios que tradicionalmente eram um exclusivo da imprensa cor-de-rosa, como os casos das famílias reais, dos líderes políticos e religiosos, dos presidentes da República, dos cientistas.
Nesta primeira fase da transformação, o mexerico deixou de ser sussurrado para passar a ser gritado, conhecido pelas vítimas, pelos verdugos e ainda por muita gente que não tinha o mínimo interesse em conhecê-lo. Perdeu o fascínio e a força do segredo. Mas em compensação proporcionou-nos uma nova imagem da vítima: já não é aquela pessoa de quem temos pena, porque agora ela é vítima na exacta medida em que é famosa. Ser objecto de um mexerico (público) converteu-se pouco a pouco num símbolo de status social.
Foi então que chegámos a uma segunda fase, quando a televisão inventou os programas em que já não eram os verdugos a lançar mexericos sobre as vítimas, mas as próprias vítimas que iam ao programa contar mexericos sobre si mesmas, esperando alcançar deste modo o status do actor ou do político. No mexerico televisivo não se diz mal de quem não está presente: é a vítima que fala de si e das suas histórias íntimas. Os objectos do mexerico são os primeiros a saber, e toda a gente sabe que eles sabem. Não são vítimas de nenhuma espécie de maledicência. Não há nenhum segredo. Nem sequer podemos dizer mal das vítimas, porque elas tiveram a coragem de se tornar verdugos de si mesmas ao exporem as suas fraquezas, nem podemos sentir pena delas, porque a confissão lhes proporciona uma vantagem invejável, a exposição pública. O mexerico perdeu assim a sua natureza de válvula social, para se converter em exibição inútil.
Esta prática começou muito antes de programas como o Big Brother, que não fazem mais do que condenar ao voyeurismo nacional personagens cuja decisão de participar em reality shows as coloca na lista das pessoas que - está à vista de quem quiser ver - precisam de ir rapidamente ao psicólogo. Já muito antes, quando ninguém as classificaria como pessoas psicologicamente instáveis, estas personagens apareciam na televisão a discutir com o cônjuge as mútuas facadas no matrimónio, a discutir com a sogra, a gritar desesperadamente o nome do amado ou da amada que os tinha abandonado, a darem bofetadas uns aos outros em público, ou a encenar casos de divórcios em que os intervenientes analisavam impiedosamente as suas incapacidades sexuais.
Se houve um tempo em que a vida privada era tão secreta que o segredo dos segredos era por definição o do confessor, agora foi a noção de confissão que mudou radicalmente de significado.
Mas ainda havia espaço para as coisas piorarem. Como os homens e as mulheres que expunham de forma vergonhosa a sua intimidade conseguiam divertir o público, ao mesmo tempo que satisfaziam a sua necessidade de serem vistos, resolveu-se condenar igualmente à exposição pública aquele que antigamente era conhecido como "O Idiota" e a quem hoje - com um understatement de sabor bíblico, e em sinal de respeito pela sua infelicidade - vou chamar o Insipiente.
O insipiente de antigamente era aquele indivíduo pouco favorecido pela mãe natureza, quer do ponto de vista físico quer do ponto de vista intelectual, que costumava frequentar a tasca da aldeia, onde os seus cruéis conterrâneos lhe ofereciam bebidas para o embriagar e o levar a fazer coisas inconvenientes e ordinárias. Recordemos que nessas aldeias o insipiente tinha uma vaga ideia de que o estavam a tratar como insipiente, mas alinhava no jogo porque era uma maneira de beber à borla e porque fazia parte da sua insipiência uma certa dose de exibicionismo.
O insipiente hodierno, da aldeia global que é a televisão, não é um indivíduo mediano, como o marido que aparece no ecrã a acusar a mulher de lhe ser infiel. É um indivíduo que está acima da média. Convidam-no para participar nos talk shows e nos concursos, precisamente porque é insipiente. Porém, o insipiente televisivo não é necessariamente um atrasado. Pode ser um espírito bizarro (como o descobridor da Arca Perdida ou o inventor de um novo sistema para o movimento perpétuo, que durante anos bateu à porta de todos os registos de patentes e de todos os jornais, e que finalmente encontra alguém que o leva a sério); pode também ser um escritor de trazer por casa que todos os editores se recusaram a publicar, mas que percebeu que mais eficaz do que escrever uma obra-prima era baixar as calças em directo na televisão e dizer palavrões durante os debates culturais; ou pode ser a bas-bleu da província que encontrou finalmente um político que se dispõe a ouvi-la soletrar umas quantas palavras difíceis a propósito das suas experiências extra-sensoriais.
Antigamente, quando os clientes da tasca faziam o insipiente ultrapassar o limite do tolerável, intervinha o presidente da junta, o farmacêutico, um amigo da família, que agarrava no desgraçado e o levava a casa. Hoje, pelo contrário, ninguém leva o insipiente da aldeia global da televisão para casa, nem ninguém o protege, e o insipiente passa a desempenhar um papel semelhante ao do gladiador, condenado à morte para agradar à multidão. A sociedade, que protege o suicida da sua trágica decisão, ou o drogado do desejo que o iria conduzir à morte, não protege o insipiente televisivo; antes pelo contrário, encoraja-o, tal como antigamente se encorajavam os anões e as mulheres com pêlos a exibirem-se nos parques de diversões.
Neste último caso estávamos a falar de um crime, e no entanto não é a salvaguarda do insipiente o que mais me preocupa (mas devia existir uma autoridade competente para estes casos, visto que estamos a falar de abuso de incapazes): é o facto de o insipiente, glorificado pela sua presença no pequeno ecrã, se estar a converter num modelo universal. Se ele conseguiu expor-se, então qualquer pessoa pode fazê-lo. A exibição do insipiente convence o público de que nada, nem sequer a mais vergonhosa das desgraças, tem o direito a permanecer na esfera do privado, e de que a exibição da deformidade compensa, premeia o seu autor. A dinâmica das audiências faz com que mal o insipiente aparece na televisão passe a ser um insipiente famoso, e esta fama mede-se através dos convites para fazer publicidade, dos convites para festas e reuniões, às vezes até pelas ofertas de serviços sexuais (Victor Hugo já nos havia ensinado que uma bela dama pode perder a cabeça pelo Homem que Ri). O conceito de deformidade deforma-se e tudo passa a ser bonito, até a própria malformação, desde que seja elevada à glória do pequeno ecrã.
Lembram-se das palavras da Bíblia? Dixit insipiens in corde suo: Deus non est. O insipiente televisivo afirma orgulhosamente: Ego sum.
Também na Internet se tem verificado um fenómeno análogo ao anterior. Quem está familiarizado com as home pages, ter-se-á dado conta de que a maior parte delas foi construída com o intento único de exibir a sua miserável normalidade, quando não se trata mesmo de anormalidade.
Há uns tempos encontrei a home page de um senhor que mostrava, e talvez ainda mostre, uma fotografia do seu cólon. Como é do conhecimento geral, há já bastante tempo que é possível ir a uma clínica e fazer um exame ao recto: há uma sonda encabeçada por uma pequena telecâmara, que permite ao paciente acompanhar num ecrã a cores a viagem da sonda (e da telecâmara) pelas suas partes mais recônditas. Alguns dias depois, o médico costuma entregar ao paciente (o mais reservadamente possível) um relatório com a fotografia a cores do seu cólon.
O problema é que os cólons dos seres humanos (excepto nos casos de tumores em estado terminal) são todos iguais. Por isso, por muito que alguém possa ter o maior interesse numa fotografia a cores do seu próprio cólon, a fotografia do de uma outra pessoa não lhe serve para nada. Pois bem, o senhor em questão deu-se ao trabalho de instalar uma home page para mostrar a toda a gente a fotografia do seu cólon. Trata-se evidentemente de alguém a quem a vida nada deu, nem um herdeiro a quem transmitir o nome, nem uma mulher que se interesse pelo seu rosto, nem amigos a quem mostrar as fotografias de férias, e que como tal se agarra a esta última, desesperada exibição, esperando obter um mínimo de visibilidade. Neste, como noutros casos de renúncia voluntária à privacidade, jazem abismos de desespero que nos deveriam inspirar uma compadecida desatenção. Mas o exibicionismo (tal é o seu drama) não permite que ignoremos a sua vergonha.
Podia fornecer-vos uma lista de outros casos em que assistimos a uma alegre e despreocupada renúncia à privacidade. Os milhares de pessoas que ouvimos na rua, no restaurante ou no comboio, discutindo ao telemóvel os seus assuntos privados, ou aquelas que encenam tragédias amorosas via satélite, não o fazem por nenhuma necessidade urgente de comunicar uma coisa importante, porque caso contrário falariam em voz baixa, esforçando-se por conservar o seu segredo. Estão é ansiosas por que toda a gente que as rodeia saiba que são elas que tomam as decisões importantes numa empresa de refrigeração, que compram e vendem acções na Bolsa, que organizam congressos, que o namorado as deixou. Gastaram dinheiro num telemóvel e pagam contas astronómicas para poderem exibir a sua vida privada à frente de toda a gente.
Não foi por divertimento que me entretive com este apanhado de pequenas e grandes teratologias psicológicas e morais. Fi-lo porque acredito que as autoridades que zelam pela nossa privacidade não têm o dever de proteger apenas aqueles que querem ser protegidos, mas também o dever de zelar pelos interesses daqueles que já não conseguem proteger-se.
Aliás, gostaria de sublinhar que o comportamento dos exibicionistas é precisamente o mais sério indicador de que os ataques à privacidade se podem vir a tornar não só num crime, mas num verdadeiro cancro social. As crianças deveriam ser as primeiras a ser educadas, para que mais tarde não sigam o mau exemplo dos pais.
Entretanto, vai-se criando um círculo vicioso. A compressão da privacidade habitua as pessoas à ideia de que ela vai acabando a pouco e pouco, até desaparecer por completo. Já há muita gente que pensa que a melhor maneira de manter um segredo é torná-lo público, de modo que escreve e-mails ou faz telefonemas em que diz tudo o que tem a dizer, porque nenhum interceptador vai prestar atenção a uma afirmação que não pareça ter sido camuflada. A pouco e pouco, as pessoas tornam-se exibicionistas porque compreendem que já nada é privado - e quando nada é privado, nenhum comportamento pode ser escandaloso. E lentamente, os indivíduos que atentam contra a nossa privacidade vão-se convencendo de que as vítimas consentem a sua intromissão, e já não haverá nada que os faça parar.

Umberto Eco, "A Perda da Privacidade", in "A Passo de Caranguejo", Difel, 2007

* O título do excerto é da minha responsabilidade

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Olhos cheios de infância (António Lobo Antunes)

São sete horas da tarde e as árvores começam a agitar-se no ventinho que antecede a noite. Vejo-as lá em cima, por uma fresta muito alta da janela do atelier: movem-se, descansam por um instante, tornam a mover-se: há mãos assim aflitas, sem destino, cheias de dedos, à procura. Não cinco dedos, dez, quinze, vinte e três, muitos. Os sons mudam de tonalidade, as vozes das pessoas que estão perto afiguram-se-me distantes, as vozes das pessoas no quarteirão a seguir oiço-as tão nítidas, tão vizinhas de mim, cada inflexão, cada sílaba, cada vogal. Um menino salta ao pé coxinho num degrau, a mulher do merceeiro vai recolhendo os caixotes. O manco do costume bebe um bagaço no balcão minúsculo, de mindinho espetado. Avança o pescoço para o cálice, de palma na gravata, os lábios aproximam-se do vidro num biquinho de beijo. Nos intervalos do bagaço olha a prateleira dos pêssegos num vagar rancoroso, de sapato aleijado no ar, à espera. caminha para casa a pilotar uma trotinete invisível. O menino que salta ao pé coxinho imita-o e o manco, pelo canto do bigode
- Vai gozar com a tua mãe, meu cabrão
enquanto as árvores continuam a agitar-se. A semana passada, ao entrar na mercearia para comprar cigarros, o manco declarava em torno, a poisar o bagaço
- Eu também sou pai
enquanto o merceeiro ia concordando com ele. Mal deram por mim calaram-se num retraimento ofendido. Os pêssegos da prateleira aguardavam que me fosse embora para recomeçar a conversa. Se calhar também eram pais. Às vezes trago pastilhas elásticas na esperança de fumar menos, a mulher do merceeiro previne-me
- Uma cunhada minha apanhou os diabetes nas pastilhas
o merceeiro manda-a calar com os olhos, o manco odeia-me mal forneço metade dos diabetes ao menino que salta ao pé coxinho no degrau
- Esse cabrão há-de acabar a roubar carros
A partir da hora do jantar, quando não se distingue o ventinho nas árvores, a Rua Gonçalves Crespo recebe um pelotão de travestis e raparigas da vida. Discutem encostadas aos automóveis, compõem malhas das meias com uma falangeta de cuspo, tropeça-se no perfume como num obstáculo sólido. Algumas têm olhos cheios de infância por trás da pintura. Marcas de agulhas nos braços magros que coçam as comichões da heroína, calcanhares que vacilam nos tacões. Um chofer de táxi parlamenta com um travesti de nádegas ao léu e cabeleira tão platinada que encandeia. Pensando melhor ninguém tem olhos cheios de infância por trás da pintura, sou eu que sou parvo. Ninguém tem olhos de nada. Existem olhos apenas e acabou-se. Aqueles que me observam na Rua Gonçalves Crespo
ou nem observam, avaliam
são duros e secos. De madeira que a droga apodreceu por dentro e vai roendo, roendo. Qual infância! A infância é um luxo de quem possui tempo para a ter tido, uma saudade retrospectiva e enternecida de quando não há fome. Algo que a gente inventa e não houve. Houve medos, Natais, adultos dando ordens
- Endireita-te
- É o garfo que vai à boca não é a boca que vai ao garfo
- Espera que os crescidos se sirvam.
Houve crescidos. Ao chegar a minha altura de crescer dei-me conta que eram umas pobres criaturas indecisas. O chofer cospe com competência, interessado nas nádegas do travesti, hesita, decide-se, volta a hesitar: uma pobre criatura indecisa. Por um segundo o ventinho lembra-se das árvores. Há séculos que o merceeiro colocou os taipais. Uma das raparigas retira um pedaço de tubo da mala e mostra-o às colegas. Um tubo enferrujado, uma sobra de cano:
- À segunda vez que lhe dei com isto na barriga amansou logo.
Olhos cheios de infância, uma treta: olhos de bicho que medem, recusam, se defendem. O serviço faz-se ali mesmo, num tapume, numa entrada aberta de rés-do-chão, com o tubozinho a jeito. Onde estará o manco a esta hora?
Se eu voltasse à mercearia não dava com os pêssegos, algures na loja às escuras, a insistirem em coro:
- Eu também sou pai.
Lábios em biquinho de beijo, mindinhos educados, sapatos aleijados no ar. Um casal de velhos remexe caixotes com a muleta. Escreve lá que os olhos deles cheios de infância, meu camelo. À segunda vez que lhe dei com isto na barriga amansou logo. A velha encontrou um bocado de cartão e examina-o com desprezo. Não notam as raparigas sequer. Ninguém vê ninguém: olhos cheios de nada. Tive infância, fui feliz, os crescidos tratavam-me bem. Volta para o atelier: na fresta muito alta da janela um quadrado ou um triângulo preto. Mais nada. Somente o quadrado ou triângulo preto e tu inclinado para a mesa, a escreveres. Escreve olhos cheios de infância, anda. Assim como assim talvez te ajude a viver.
António Lobo Antunes, "Segundo Livro de Crónicas", Dom Quixote, 2002

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A história da moral (Alexandre O' Neill)

Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.


Alexandre O' Neill, "Poesias Completas", Assírio & Alvim

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Três americanos (Eça de Queirós)

Três. Três americanos completos, desde os chapéus até ao génio. Direitos, secos, hirtos, firmes, com o seu andar recto e rijo, o peito saliente, como uma proa segura que corta o destino, os pés largos e vastamente pousados, o ar sério e apressado. Vêm de desembarcar do paquete. É em Lisboa. Só aqui, entre estas figuras incaracterísticas e banais, que amolecem as ruas, as suas pessoas originais têm o relevo pitoresco e o destaque especial.
De onde vêm? De toda a parte. Para onde vão? Para o dinheiro. Tudo na sua figura revela este caminhar resoluto e direito para o ganho; no rosto, nos gestos, na toilette, nas rugas, nas barbas, sente-se a grande vontade americana - lucrar depressa. O nariz erguido fareja subtilmente o metal. O olho firme olha para a frente magneticamente. Os lábios finos contraídos, económicos de palavra, parecem secos da quantidade de cifras que têm pronunciado. Os fatos são curtos, cortados, fatos de agilidade e de movimento, que indicam a pressa, a áspera carreira atrás do "dólar". Poucas malas que embaracem e retenham a actividade. Um bom reflard para as chuvas, um chapéu-capacete para o sol. Como a vida é uma guerra, a toilette torna-se uma armadura. Mas sobretudo o andar. É ele que revela o homem de lucro: nada é indolente, distraído, flaneur, naquele andar mecânico, conciso e sôfrego: cada passada é um acto de tomar posse, as solas rangem de impaciência. Para que a articulação esteja mais livre põem polainas de linho, as biqueiras arreganhadas têm um ar orgulhoso, por serem as primeiras que chegam. As correntes de relógio tilintam de alegria, e a gaze que lhes flutua no chapéu acena vitoriosamente, como a bandeira da agiotagem.
Vejam-nos bem. O primeiro é dos estados do Sul, da Carolina ou da Luisiana. O sol deu-lhe mais a ênfase meridional, é o mais rápido, o mais flexível, o mais pomposo; vai como a coberta de um paquete:os braços parecem duas velas suplementares, e o charuto fumega-lhe como um cano. Tem o chapéu-capacete da Índia e da Austrália. É o mais seco, o mais febril, o mais ardente. Prefere os altos negócios, as empresas de caminho de ferro, a mina de ouro. Vem decerto da Califórnia ou da planura do México, onde há a prata; com a sua saúde elástica e de cauchu, dá-se tão bem nas febres da Bolívia como no sereno ar de Florença. O Sul pôs-lhe no cérebro uma ponta de febre. Como prefere os negócios violentos e aventurosos, quer as orgias desesperadas. Precisa gastar-se, prodigalizar-se, espalhar-se, exalar-se. É ele que dá nos teatros os pequenos gritos agudos, como ganidos. É ele que ama os concertos onde se pontua a música com tiros. É ele o violento: quando o não servem a tempo no restaurante, crava uma navalha nas costas de Werther. É ele que canta estranguladamente as canções retalhadas e metálicas, que parecem um tilintar de libras, seco, musculoso, duro, esguio, adunco; quando não tem uma companhia a fundar, um preto a espancar, uma floresta a devassar, vai para casa desesperado, toma uma cadeira e corta-a aos bocados com um canivete.
O outro é do Norte - grosso, vermelho, forte, leva em si todo o orgulho da América. Sente-se cheio de honra de ser um cidadão dos Estados Unidos. É por isso que entende que se deve dar a todos os deveres civis da união; é brucheiro, fundou uma escola ou um clube, odeia a Inglaterra, masca o inglês, vota por Grant, que se embebeda, e detesta Greeley, que só bebe água. Julga-se obrigado a amar fraternalmente o Negro, mas, se o encontra no alto dum ónibus ao pé de si, atira-o nobremente ao lajedo; sente-se ainda nele o ianque mal desbastado, tem orgulho nisso, acentua a sua espessura, e põe pontos e vírgulas na brutalidade; se lhe pisam um pé no estrangeiro, pede 6000 libras de indemnização; traz a Bíblia no bolso, tendo à margem apontamentos de negócios e fileiras de cifras; usa chapéu de cortiça por ser mais prático, mas entende, à americana, que deve parecer bem, e põe-lhe uma pena de pavão. Joga a luta, é casado, tem a especialidade dos ventos, é ele que leva nas noites de eleições a bandeira em que vai o nome de Sumner, e, para mostrar bem que descende do primitivo ianque, traz uma argola na orelha.
O outro, de barbas grandes, cabelo comprido e caído em roda da cabeça, como a aba de um capacete, é do Canadá; raça que pretende ter teorias: é dissidente no protestantismo, mas espalha Bíblias. Ocupa-se sobretudo de estatística. Vejam:vai em redor observando. Olha para trás. Os outros, que são da América, arrastam-no na sua carreira para o dinheiro, mas ele demora-se, observando; quereria tomar apontamentos, conta o número dos trens, quantas lojas há de máquinas de costura, e estuda os costumes. É ele que se interessa pela descoberta de Livingstone. É ele que tem uma fábrica de cerveja, que tem por fora o aspecto de uma capela gótica. É ele que ao domingo, sob a chuva miúda do norte, trepa a um banco, a uma esquina, e com o guarda-chuva aberto, gravemente, explica uma passagem da Bíblia, e no fim distribui anúncios de uma fábrica de fundição. É cauteloso, sempre vestido de flanela, é da sociedade para animar a salvação dos afogados. É casado, e todos os dias à noite faz o seu diário. Um dia escreveu-lhe: hoje, dez horas, adquiri a certeza de que a minha mulher me trairia. Um lunch, 5, leitura de um Tratado sobre a Moralização dos Pequenos Peles-Vermelhas.
Três são. Uma coisa têm de comum - a individualidade, o myself. Eu mesmo, eu cidadão americano, de resto nada. Outro ponto de contacto: nunca se espreguiçam. De resto, com toda a sua civilização, a sua riqueza, o seu ouro, o seu myself, o seu ruído sobre o planeta, a sua intimidade com Deus, não seriam capazes, todos juntos, desde o Canadá até Filadélfia, desde o presidente Grant até ao Negro, que agora geme atrelado ao algodão, de fazer um verso de Musset, ou um desenho de Delacroix. E têm outra desgraça: assoam-se muito.
De resto, magníficos.
Eça de Queirós, "Três Americanos", in "Notas Contemporâneas"