sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Três americanos (Eça de Queirós)

Três. Três americanos completos, desde os chapéus até ao génio. Direitos, secos, hirtos, firmes, com o seu andar recto e rijo, o peito saliente, como uma proa segura que corta o destino, os pés largos e vastamente pousados, o ar sério e apressado. Vêm de desembarcar do paquete. É em Lisboa. Só aqui, entre estas figuras incaracterísticas e banais, que amolecem as ruas, as suas pessoas originais têm o relevo pitoresco e o destaque especial.
De onde vêm? De toda a parte. Para onde vão? Para o dinheiro. Tudo na sua figura revela este caminhar resoluto e direito para o ganho; no rosto, nos gestos, na toilette, nas rugas, nas barbas, sente-se a grande vontade americana - lucrar depressa. O nariz erguido fareja subtilmente o metal. O olho firme olha para a frente magneticamente. Os lábios finos contraídos, económicos de palavra, parecem secos da quantidade de cifras que têm pronunciado. Os fatos são curtos, cortados, fatos de agilidade e de movimento, que indicam a pressa, a áspera carreira atrás do "dólar". Poucas malas que embaracem e retenham a actividade. Um bom reflard para as chuvas, um chapéu-capacete para o sol. Como a vida é uma guerra, a toilette torna-se uma armadura. Mas sobretudo o andar. É ele que revela o homem de lucro: nada é indolente, distraído, flaneur, naquele andar mecânico, conciso e sôfrego: cada passada é um acto de tomar posse, as solas rangem de impaciência. Para que a articulação esteja mais livre põem polainas de linho, as biqueiras arreganhadas têm um ar orgulhoso, por serem as primeiras que chegam. As correntes de relógio tilintam de alegria, e a gaze que lhes flutua no chapéu acena vitoriosamente, como a bandeira da agiotagem.
Vejam-nos bem. O primeiro é dos estados do Sul, da Carolina ou da Luisiana. O sol deu-lhe mais a ênfase meridional, é o mais rápido, o mais flexível, o mais pomposo; vai como a coberta de um paquete:os braços parecem duas velas suplementares, e o charuto fumega-lhe como um cano. Tem o chapéu-capacete da Índia e da Austrália. É o mais seco, o mais febril, o mais ardente. Prefere os altos negócios, as empresas de caminho de ferro, a mina de ouro. Vem decerto da Califórnia ou da planura do México, onde há a prata; com a sua saúde elástica e de cauchu, dá-se tão bem nas febres da Bolívia como no sereno ar de Florença. O Sul pôs-lhe no cérebro uma ponta de febre. Como prefere os negócios violentos e aventurosos, quer as orgias desesperadas. Precisa gastar-se, prodigalizar-se, espalhar-se, exalar-se. É ele que dá nos teatros os pequenos gritos agudos, como ganidos. É ele que ama os concertos onde se pontua a música com tiros. É ele o violento: quando o não servem a tempo no restaurante, crava uma navalha nas costas de Werther. É ele que canta estranguladamente as canções retalhadas e metálicas, que parecem um tilintar de libras, seco, musculoso, duro, esguio, adunco; quando não tem uma companhia a fundar, um preto a espancar, uma floresta a devassar, vai para casa desesperado, toma uma cadeira e corta-a aos bocados com um canivete.
O outro é do Norte - grosso, vermelho, forte, leva em si todo o orgulho da América. Sente-se cheio de honra de ser um cidadão dos Estados Unidos. É por isso que entende que se deve dar a todos os deveres civis da união; é brucheiro, fundou uma escola ou um clube, odeia a Inglaterra, masca o inglês, vota por Grant, que se embebeda, e detesta Greeley, que só bebe água. Julga-se obrigado a amar fraternalmente o Negro, mas, se o encontra no alto dum ónibus ao pé de si, atira-o nobremente ao lajedo; sente-se ainda nele o ianque mal desbastado, tem orgulho nisso, acentua a sua espessura, e põe pontos e vírgulas na brutalidade; se lhe pisam um pé no estrangeiro, pede 6000 libras de indemnização; traz a Bíblia no bolso, tendo à margem apontamentos de negócios e fileiras de cifras; usa chapéu de cortiça por ser mais prático, mas entende, à americana, que deve parecer bem, e põe-lhe uma pena de pavão. Joga a luta, é casado, tem a especialidade dos ventos, é ele que leva nas noites de eleições a bandeira em que vai o nome de Sumner, e, para mostrar bem que descende do primitivo ianque, traz uma argola na orelha.
O outro, de barbas grandes, cabelo comprido e caído em roda da cabeça, como a aba de um capacete, é do Canadá; raça que pretende ter teorias: é dissidente no protestantismo, mas espalha Bíblias. Ocupa-se sobretudo de estatística. Vejam:vai em redor observando. Olha para trás. Os outros, que são da América, arrastam-no na sua carreira para o dinheiro, mas ele demora-se, observando; quereria tomar apontamentos, conta o número dos trens, quantas lojas há de máquinas de costura, e estuda os costumes. É ele que se interessa pela descoberta de Livingstone. É ele que tem uma fábrica de cerveja, que tem por fora o aspecto de uma capela gótica. É ele que ao domingo, sob a chuva miúda do norte, trepa a um banco, a uma esquina, e com o guarda-chuva aberto, gravemente, explica uma passagem da Bíblia, e no fim distribui anúncios de uma fábrica de fundição. É cauteloso, sempre vestido de flanela, é da sociedade para animar a salvação dos afogados. É casado, e todos os dias à noite faz o seu diário. Um dia escreveu-lhe: hoje, dez horas, adquiri a certeza de que a minha mulher me trairia. Um lunch, 5, leitura de um Tratado sobre a Moralização dos Pequenos Peles-Vermelhas.
Três são. Uma coisa têm de comum - a individualidade, o myself. Eu mesmo, eu cidadão americano, de resto nada. Outro ponto de contacto: nunca se espreguiçam. De resto, com toda a sua civilização, a sua riqueza, o seu ouro, o seu myself, o seu ruído sobre o planeta, a sua intimidade com Deus, não seriam capazes, todos juntos, desde o Canadá até Filadélfia, desde o presidente Grant até ao Negro, que agora geme atrelado ao algodão, de fazer um verso de Musset, ou um desenho de Delacroix. E têm outra desgraça: assoam-se muito.
De resto, magníficos.
Eça de Queirós, "Três Americanos", in "Notas Contemporâneas"