sexta-feira, 11 de julho de 2008

Acerca da retórica (Umberto Eco)

Não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, porque tenho a clara consciência de que me estou a dirigir a uma massa de idiotas com o cérebro liquefeito e sei que não vão perceber absolutamente nada.
Agrada-vos este início?Trata-se de um caso de captatio malevolentiae, uma figura de retórica que não existe e que não pode existir, cujo objectivo é inimizar a audiência e virá-la contra o orador. (...)
Tudo teria sido diferente se eu tivesse começado desta maneira: "Não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, mas vou continuar a falar em sinal de respeito aos dois ou três presentes que não fazem parte da massa de idiotas com o cérebro liquefeito que enchem esta sala." Este seria um caso (ainda que extremo e perigoso) de captatio benevolentiae, porque cada um de vocês se sentiria imediatamente convencido de ser uma dessas duas ou três pessoas e, olhando com desprezo para os outros, seguir-me-ia com afectuosa cumplicidade.
A captatio benevolentiae é um artifício retórico que consiste, como seguramente já terão percebido, em conquistar de imediato a simpatia do interlocutor. Uma das formas de captatio benevolentiae é, por exemplo, começar um discurso com as seguintes palavras: "é para mim uma honra falar diante de um público tão qualificado" (...).
A retórica é uma técnica de persuasão e, uma vez mais, a persuasão não é uma coisa má, ainda que seja possível recorrer-se a técnicas reprováveis para persuadir alguém a fazer algo contra o seu próprio interesse. A técnica da persuasão nasceu e foi estudada porque, em muitos casos, não podemos convencer os nossos interlocutores através de raciocínios apodícticos. Uma vez estabelecido o que é um ângulo, um lado, uma área e um triângulo, ninguém pode pôr em dúvida a demonstração do teorema de Pitágoras. Mas a maior parte dos temas que discutimos no dia a dia são assuntos que podem suscitar as mais diversas opiniões. (...)
Como na maior parte dos casos se debatem temas que são objecto de discussão, a técnica retórica ensina-nos a encontrar as opiniões com as quais a maior parte da audiência está de acordo, a elaborar raciocínios que sejam dificilmente contestados, a usar a linguagem mais apropriada para convencer a audiência dos méritos da nossa proposta, para despertarmos nela emoções que propiciem o triunfo da nossa argumentação, incluindo a captatio benevolentiae.
Há naturalmente discursos persuasivos que se desmontam com facilidade, através do recurso a discursos ainda mais persuasivos, que mostram os limites da argumentação. Tenho a certeza de que todos vocês (captatio) já ouviram falar daquele anúncio imaginário que diz "comam merda, os milhões de moscas que o fazem não podem estar enganadas", e que ocasionalmente é usado para demonstrar que as maiorias nem sempre têm razão. O argumento pode ser rebatido perguntando-se se as moscas têm uma predilecção pelo esterco por razões de gosto ou por razões de necessidade. Ou perguntando se, caso espalhássemos mel e caviar pelos campos, as moscas não se sentiriam mais atraídas por estas substâncias. Recordar-se-ão que a premissa "cada um come aquilo que gosta" é contrariada por inúmeras situações que levam as pessoas a comer coisas de que não gostam, como sucede nas prisões, nos hospitais, no exército, durante os períodos de fome, ou quando se faz dieta.
Percebe-se agora claramente porque é que a captatio malevolentiae não pode ser um artifício retórico. A retórica visa obter o consenso e, como tal, não pode valorizar exórdios que provoquem imediatamente o desacordo. É, por isso, uma técnica que só pode florescer nas sociedades livres e democráticas, incluindo aquele tipo de democracia imperfeita que caracterizava a antiga cidade de Atenas. Se eu consigo impor um certo comportamento através da força, o consenso já não me faz falta nenhuma: os ladrões, os violadores, os saqueadores e os kapo de Auschwitz nunca precisaram de recorrer a técnicas retóricas.
Podemos então estabelecer uma linha de fronteira: há culturas e países onde o poder assenta no consenso, e nesses casos usam-se técnicas de persuasão, e há países despóticos onde só valem as leis da força e da prevaricação, nos quais não é necessário persuadir ninguém.
Umberto Eco, O Lobo e o Cordeiro, in "A Passo de Caranguejo", Difel, 2007

Sem comentários: