segunda-feira, 14 de julho de 2008

AElius Hadrianus, Imperador (Marguerite Yourcenar)

Fui esta manhã a casa de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei-me num leito depois de ter tirado o manto e a túnica. Poupo-te a pormenores que te seriam tão desagradáveis como a mim próprio e à descrição do corpo de um homem que avança na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes, alarmado, a seu pesar, com os progressos tão rápidos do mal e disposto a atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores, triste amálgama de linfa e de sangue. Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono. Basta... Amo o meu corpo; serviu-me bem e de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários. Mas já não conto, como Hermógenes pretende ainda fazer, com as virtudes maravilhosas das plantas e a dosagem exacta dos sais minerais que ele foi buscar ao Oriente. Este homem, aliás tão fino, dirigiu-me vagas fórmulas de reconforto, excessivamente banais para enganarem alguém; ele bem sabe como eu odeio esse género de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos. Perdoo a tão bom servidor esta tentativa de me esconder a minha morte. Hermógenes é competente; é mesmo sábio; a sua probidade é muito superior à de um vulgar médico da corte. Terei a sorte de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas ninguém pode ultrapassar os limites prescritos; as minhas pernas inchadas já me não aguentam as longas cerimónias romanas; sufoco; e tenho sessenta anos.
Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo. A minha margem de hesitação já se não alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro parecem definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado caledónio ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.


Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano", Editora Ulisseia, 1997

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