terça-feira, 29 de julho de 2008

Inscrição (Sophia de Mello Breyner Andresen)


Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar.

domingo, 27 de julho de 2008

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya (Jorge de Sena)

Goya
Três de Maio de 1808

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue."
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia -
mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruiram, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena, Poesia-II. Moraes Editores

segunda-feira, 14 de julho de 2008

AElius Hadrianus, Imperador (Marguerite Yourcenar)

Fui esta manhã a casa de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei-me num leito depois de ter tirado o manto e a túnica. Poupo-te a pormenores que te seriam tão desagradáveis como a mim próprio e à descrição do corpo de um homem que avança na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes, alarmado, a seu pesar, com os progressos tão rápidos do mal e disposto a atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores, triste amálgama de linfa e de sangue. Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono. Basta... Amo o meu corpo; serviu-me bem e de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários. Mas já não conto, como Hermógenes pretende ainda fazer, com as virtudes maravilhosas das plantas e a dosagem exacta dos sais minerais que ele foi buscar ao Oriente. Este homem, aliás tão fino, dirigiu-me vagas fórmulas de reconforto, excessivamente banais para enganarem alguém; ele bem sabe como eu odeio esse género de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos. Perdoo a tão bom servidor esta tentativa de me esconder a minha morte. Hermógenes é competente; é mesmo sábio; a sua probidade é muito superior à de um vulgar médico da corte. Terei a sorte de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas ninguém pode ultrapassar os limites prescritos; as minhas pernas inchadas já me não aguentam as longas cerimónias romanas; sufoco; e tenho sessenta anos.
Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo. A minha margem de hesitação já se não alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro parecem definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado caledónio ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.


Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano", Editora Ulisseia, 1997

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Acerca da retórica (Umberto Eco)

Não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, porque tenho a clara consciência de que me estou a dirigir a uma massa de idiotas com o cérebro liquefeito e sei que não vão perceber absolutamente nada.
Agrada-vos este início?Trata-se de um caso de captatio malevolentiae, uma figura de retórica que não existe e que não pode existir, cujo objectivo é inimizar a audiência e virá-la contra o orador. (...)
Tudo teria sido diferente se eu tivesse começado desta maneira: "Não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, mas vou continuar a falar em sinal de respeito aos dois ou três presentes que não fazem parte da massa de idiotas com o cérebro liquefeito que enchem esta sala." Este seria um caso (ainda que extremo e perigoso) de captatio benevolentiae, porque cada um de vocês se sentiria imediatamente convencido de ser uma dessas duas ou três pessoas e, olhando com desprezo para os outros, seguir-me-ia com afectuosa cumplicidade.
A captatio benevolentiae é um artifício retórico que consiste, como seguramente já terão percebido, em conquistar de imediato a simpatia do interlocutor. Uma das formas de captatio benevolentiae é, por exemplo, começar um discurso com as seguintes palavras: "é para mim uma honra falar diante de um público tão qualificado" (...).
A retórica é uma técnica de persuasão e, uma vez mais, a persuasão não é uma coisa má, ainda que seja possível recorrer-se a técnicas reprováveis para persuadir alguém a fazer algo contra o seu próprio interesse. A técnica da persuasão nasceu e foi estudada porque, em muitos casos, não podemos convencer os nossos interlocutores através de raciocínios apodícticos. Uma vez estabelecido o que é um ângulo, um lado, uma área e um triângulo, ninguém pode pôr em dúvida a demonstração do teorema de Pitágoras. Mas a maior parte dos temas que discutimos no dia a dia são assuntos que podem suscitar as mais diversas opiniões. (...)
Como na maior parte dos casos se debatem temas que são objecto de discussão, a técnica retórica ensina-nos a encontrar as opiniões com as quais a maior parte da audiência está de acordo, a elaborar raciocínios que sejam dificilmente contestados, a usar a linguagem mais apropriada para convencer a audiência dos méritos da nossa proposta, para despertarmos nela emoções que propiciem o triunfo da nossa argumentação, incluindo a captatio benevolentiae.
Há naturalmente discursos persuasivos que se desmontam com facilidade, através do recurso a discursos ainda mais persuasivos, que mostram os limites da argumentação. Tenho a certeza de que todos vocês (captatio) já ouviram falar daquele anúncio imaginário que diz "comam merda, os milhões de moscas que o fazem não podem estar enganadas", e que ocasionalmente é usado para demonstrar que as maiorias nem sempre têm razão. O argumento pode ser rebatido perguntando-se se as moscas têm uma predilecção pelo esterco por razões de gosto ou por razões de necessidade. Ou perguntando se, caso espalhássemos mel e caviar pelos campos, as moscas não se sentiriam mais atraídas por estas substâncias. Recordar-se-ão que a premissa "cada um come aquilo que gosta" é contrariada por inúmeras situações que levam as pessoas a comer coisas de que não gostam, como sucede nas prisões, nos hospitais, no exército, durante os períodos de fome, ou quando se faz dieta.
Percebe-se agora claramente porque é que a captatio malevolentiae não pode ser um artifício retórico. A retórica visa obter o consenso e, como tal, não pode valorizar exórdios que provoquem imediatamente o desacordo. É, por isso, uma técnica que só pode florescer nas sociedades livres e democráticas, incluindo aquele tipo de democracia imperfeita que caracterizava a antiga cidade de Atenas. Se eu consigo impor um certo comportamento através da força, o consenso já não me faz falta nenhuma: os ladrões, os violadores, os saqueadores e os kapo de Auschwitz nunca precisaram de recorrer a técnicas retóricas.
Podemos então estabelecer uma linha de fronteira: há culturas e países onde o poder assenta no consenso, e nesses casos usam-se técnicas de persuasão, e há países despóticos onde só valem as leis da força e da prevaricação, nos quais não é necessário persuadir ninguém.
Umberto Eco, O Lobo e o Cordeiro, in "A Passo de Caranguejo", Difel, 2007