domingo, 27 de fevereiro de 2011

Italo Calvino - O seio nu

O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitária. Encontra poucos banhistas. Uma mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. Sabe que em semelhantes circunstâncias, quando um desconhecido se aproxima, as mulheres, geralmente, apressam-se a cobrir-se, e isso não lhe parece bem: porque é aborrecido para a banhista que apanha sol tranquilamente; porque o homem que passa sente que importuna; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; porque as convenções não inteiramente respeitadas propagam a insegurança e a incoerência no comportamento, em vez da liberdade e da franqueza.
Por isso, assim que vê aparecer à distância a nuvem brônzeo-rósea de um torso nu feminino, apressa-se a colocar a cabeça de molde a que a trajectória do seu olhar permaneça suspensa no vazio, como garante do seu respeito cívico pela fronteira invisível que circunda as pessoas.
No entanto - pensa ele continuando a caminhar e, mal o horizonte se encontra desocupado, retomando o livre movimento do globo ocular - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito, o qual, a julgar pelo reflexo que dele chegou aos confins do meu campo visual, me pareceu fresco e agradável à vista. Em suma, o meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.
Regressando do seu passeio, Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí está - reflecte ele satisfeito consigo próprio, prosseguindo a sua caminhada - consegui fazer com que o seio fosse completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo.
Mas será verdadeiramente justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou não será isso rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, considerá-la um objecto e, o que é ainda pior, considerar como um objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até aflorar a pele tensa, recua, como que avaliando com um ligeiro arrepio a consistência diferente da visão e o valor especial que ela adquire, e fica por um momento a pairar no ar, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distância, de uma forma evasiva mas simultaneamente protectora, para depois retomar o seu curso, como se nada se tivesse passado.
Creio que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser entendido como uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que ele significa, colocando-o, de algum modo, à parte, à margem, ou entre parêntesis? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por séculos de pudicícia sexo-maníaca e de pecado de concupiscência...
Semelhante interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar que, apesar de pertencer a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino era asociada à ideia de intimidade amorosa, aplaude no entanto esta mudança nos usos e costumes, quer pelo que ela significa como reflexo de uma mentalidade mais aberta, quer porque uma tal visão lhe é particularmente grata. É esse apoio desinteressado que ele gostaria de poder exprimir no seu olhar.
Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial atenção, mas apressar-se-á a considerá-los como parte de um arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as núvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes aureolados.
Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista solitária e para desembaraçar o ambiente de ilações deslocadas. Mas assim que ele volta a aproximar-se, ei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O peso-morto de uma tradição de maus-costumes não permite que se apreciem com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.
Italo Calvino, Palomar

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