sábado, 25 de abril de 2009

Carta da senhora Stolle à sua Amiga do Peito (Gonzalo Torrente Ballester)

Oh, darling, darling, mon coeur, a que ponto me comove esta coincidência nos gostos que se deduz da tua última carta! Como posso concordar com os laços de moiré na garganta quando se tem um decote escandaloso? E quem me convencerá de que o lacinho, mesmo violeta, minora o efeito, perturbador até à repugnância, do que quase se mostra um pouco mais abaixo? Não sei que inventarão esses Franceses para conseguir que todas as mulheres pareçam cocottes mas, felizmente, o bom exemplo chega-nos do outro lado do canal, nas pessoas e nos costumes da Corte Impecável. Ali não se usam lacinhos de moiré. Logo, nada de lacinhos e para o Inferno, sem paliativos, aquela que os usar. Consultei sobre o caso o reverendo Virgílio, que é um dos meus fiéis (já te falei dele, não é verdade?) e, depois de estudar o caso muito conscienciosamente, respondeu-me que a intenção do lacinho, apesar de inicialmente parecer convidar a uma distracção, acaba por actuar como um indicador e que, portanto, e sem susto, se pode considerar o seu uso como um costume quase diabólico, no caso - acrescentou - de o diabólico existir como se vem entendendo e não de maneira abstracta e especulativa, entre a fantasia teológica e a poética." "Então, reverendo, o senhor acha que a senhora Rheinland, que foi a primeira a usá-lo, ao mesmo tempo que rebaixa o decote uma polegada está, como quem diz, no próprio Inferno?" O reverendo demorou-se um momento a responder, como se estivesse a pensar no assunto; depois disse-me: "No caso problemático de que exista o Inferno e de que a senhora Rheinland se sobreviva a si própria para poder ir ter a ele, pode ter a certeza de que, de certo modo, já lá está instalada." "Mas, reverendo, isso que acaba de me dizer supõe alguma dúvida acerca da realidade do Inferno?" "Dúvida metódica tão-só, dúvida científica. O teólogo sério não pode, sem mais nem ontem, aceitar as crenças tradicionais que, pelo menos uma vez em cada século, têm de ser revistas. Nós quase não o fazemos desde os tempos de Lutero." Não desatei a chorar por vergonha, nem me lancei nos seus braços porque o pobre Virgílio é tão distraído e, sobretudo, tão inexperiente (pratica o celibato, como nos velhos tempos) que não teria sabido o que fazer comigo, apesar de estarmos sós e de eu saber de sobra o que faria com ele. Irritava-me suspeitar que a senhora Rheinland pode continuar a mostrar os peitos aqui no Aquém, com a consciência tranquila acerca do que lhe possa vir a acontecer no Além. Eu tenho má consciência, graças a Deus e à boa educação que recebi; que seria de nós sem a má consciência? Que seria de ti, amor, darling, exímia em tantas perversidades mentais? Lembras-te de quando, na corte de Haia, brincávamos a fazer de conta que matávamos as pessoas feias? Que as matávamos com o coração, não com punhal nem com veneno. Finalmente acalmei. "Reveja o que lhe parecer bem, reverendo, mas não nos deixe sem Inferno. Se me tira essa arma, como poderei combater contra essa bruxa da senhora Rheinland, essa judia vergonhosa e desavergonhada?" "Pensarei nisso, pensarei nisso." No fundo, foi uma sorte que o reverendo não me tenha levantado as saias, como era o meu gosto, porque, naquele momento, entrou Simone Paschal com notícias políticas expressas aos gritos convulsos. "Correm com ele, correm com ele, querem correr com ele!" "Com quem?" "Com quem haveria de ser? Com o grão-duque." As notícias que trazia talvez venham de Viena, mas talvez venham de Munique e, com estas incertezas, nunca há nada que se possa comentar com um mínimo de lógica, como nos bons tempos. As notícias incertas só permitem o comentário a meias, cheias de mas, de talvez, de quem sabe, e de distinguos perigosos. E as mulheres como eu só se mostram na plenitude do seu encanto quando afirmam, quando esmagam. Tive que desviar a conversa para a senhora Rheinland e afirmar, como se afirma a morte, que segura as mamas com um artifício moderno que lhe trouxeram de Paris (a propósito, sabes alguma coisa disso?). Enfim, é muito provável que tu, nesse retiro italiano, saibas mais do que nós ou, pelo menos, que as notícias te cheguem menos torcidas. A única coisa segura é que resta, ao grão-duque, pouco tempo de reinado, a não ser que apareça não sei que talismã milagroso do qual se fala por estes dias, que um verdadeiro exército de esbirros se dedica a procurar por toda a cidade, não da parte do grão-duque, que esse não está nada preocupado, mas da outra. Um talismã! Imagina. Como nos tempos da Maria Caxuxa. Será esse falo francês que usava Isabel de Inglaterra e que lhe deu tanta sorte que foi a única das jóias da coroa que não apareceu nunca? Trata-se de algo desse tipo que, encontrado, assegurará o trono ao nosso grão-duque. Dizem que o traz um adolescente divino, ao qual quiseram já assassinar umas vezes, sei lá, e que o verei trazer ao meu salão. Além do mais é poeta. Isso do divino entende-o como quiseres.
Não deixes de me dizer como resolvem as Italianas a questão do lacinho. Não estou nada tranquila. Tenho ouvido dizer que os moralistas católicos permitem que o decote baixe tudo o que se quiser contanto que não se mostrem as pontinhas. Que mesquinhos são esses padres! Imorais! E os peitos que vão caindo, quê?
Margarita, darling, manda-me um desses livros que tu sabes. A senhora Rheinland dedica-se à importação de escritores franceses. Os ingleses já os conhecemos todos, ainda que não entendamos nenhum. Que se escreve em Itália? A velha musa de Aretino, já se extinguiu? É a maldita política que esgota o bom humor e a invenção.
Gonzalo Torrente Ballester, "A Rosa dos Ventos", Difel

Sem comentários: