terça-feira, 5 de agosto de 2008

Calados, submissos, inúteis * (António Lobo Antunes)

Uma vez por semana não trabalho no barco. Fecho o portão à chave para impedir os primos da Sofia de entrarem na quinta e me expulsarem como da casa de Cascais e vou a Lisboa, à clínica, visitar o meu pai num rés-do-chão de Alvalade onde havia campos e agora existem vivendas e esplanadas e ruas sob as árvores, e lá está ele numa poltrona à janela, sem conseguir falar no meio de outros velhos que não falam também, também de roupão, também imóveis, também de dedos nos joelhos, mirando-me em silêncio num vazio zangado, o meu pai que duas empregadas arrastam à noite para a cama numa aflição de pantufas
- Fazer ó-ó fazer ó-ó quem é que tem muito juizo e faz um ó-ó lindo quem é?
lhe desatam o nastro do pijama, desabotoam a braguilha, colocam um bacio entre as pernas magríssimas, só cerdas e ossos
- Chichi senhor doutor chichi chchchchchchchch então que é isso vamos lá bravo óptimo bravo hoje não nos vai sujar os lençoizinhos lavados pois não seu maroto?
o meu pai de queixo pendente, de nádegas bambas, a tentar limpar o nariz com a manga que treme, e elas solícitas
- Tem o lencinho na algibeira não tem senhor doutor tem sim senhor cá está ele repare no lencinho diga aqui à Fernanda para que lhe serve o lencinho
o meu pai calado, submisso, inútil, sem cigarrilha, sem dentadura postiça, sem lábios, sem chapéu, estendido no colchão como um espantalho de cana, as empregadas a comporem-lhe a coberta
- Malandreco
a sumirem-se no corredor, a repetirem no quarto ao lado, invisíveis, de vozes amortecidas por um roçar de panos, um roçar de esmalte, a espessura do tabique
- Chichi senhor major chichi chchchchchchchch então que é isso vamos lá bravo óptimo bravo hoje não nos vai sujar os lençoizinhos lavados pois não seu maroto?
e outro espantalho de cana num colchão, outro malandreco calado, outro malandreco submisso, outro malandreco inútil, as vozes mais longe, no entusiasmo de sempre
- Chichi
o meu pai de moleirinha na almofada e da janela atrás dele a paz de candeeiros do largo, pedaços de fachadas, um escorrega e um balouço num quadrado de relva azulado da lua, eu pequeno na sala com um jogo de cubos e o meu pai a pousar o jornal, a tirar a cebola do colete, a esticar o indicador na direcção da porta
- Arrumar imediatamente o jogo guardar a caixa no armário e pildra
em Alvalade a paz de candeeiros do largo, as folhas das árvores no céu lilás, as borboletas do verão espalmadas nos caixilhos, as vozes das empregadas nos antípodas, inalteráveis de zelo
- Chichi
eu na sala com receio do escuro, dos ladrões, dos lobos
(a governanta a mentir-me
- Não há lobos nenhuns não há lobos onde é que já se viram lobos na quinta menino?)
eu a segurar as lágrimas
- Só mais este jogo prometo, só mais cinco minutos pai
o meu pai de bochechas côncavas, a respirar em sobressalto pela chaleira dos pulmões, de unhas compridas no rebordo da colcha, o meu pai de perna cruzada, sumido no jornal, com o chapéu navegando sobre as notícias numa aura de fumo, a mandar-me para a morte
(a cozinheira a cuidar que eu era parvo
- O menino está a brincar comigo ou quê?)
o meu pai
- Pildra
eu apavorado pelo escuro, pelos ladrões, pelos lobos, a tentar salvar a vida e a meter o jogo na caixa o mais devagarinho que podia enquanto as badaladas do relógio da parede soavam uma condenação definitiva, eu a caminhar para o armário, transportando a caixa dos cubos, a ganhar tempo com passos de infinita cautela como quem transporta uma bandeja de copos a transbordar num convés de navio, o chapéu a erguer-se do jornal, ameçador
- Não tarda um segundo levanto-me João
os lobos muito quietos, de goela aberta à minha espera entre as consolas, os ladrões de máscara na cara a prepararem os sacos em que me haviam de roubar para me venderem na feira aos ciganos de Azeitão
(palpando-me os tornozelos como palpavam as mulas)
eu a acender os interruptores que me separavam do quarto porque toda a gente sabe que nem os lobos nem os gatunos se dão bem com a electricidade, e na clínica, comigo num banco a olhá-lo, de cotovelo na mesinha de cabeceira repleta de pastilhas e xaropes, um guarda-vento a bater, as vozes das empregadas a crescerem de novo, passos, uma franja a espreitar, um fragmento de avental, o bâton de um sorriso
- O seu pai é um santo coitadinho
o santo erguendo e baixando o peito num ruído de pedras húmidas que chocalhavam, sem reparar em mim, sem se importar comigo nem com a quinta nem com a casa nem com os comunistas, sem me oferecer o revólver do cinto
- Dispara
o santo transformado num mikado de tíbias, num par de narinas dilatadas, num roberto sem préstimo, e apesar disso eu à espera de uma palavra que não sabia qual era e que não vinha, não viria nunca, que o médico me explicou que nem sonhasse que vinha a mostrar-me análises e radiografias, manchas que contornava com a esferográfica didáctica
- Se o seu pai se conservar assim é uma sorte vamos a ver se prevenimos mais ataques o pior são as escaras o pior é a possibilidade de uma pneumonia
o médico a arrumar análises e radiografias num envelope castanho e eu a despir-me tão depressa quanto conseguia e a procurar adormecer antes que o meu pai viesse e apagasse as luzes dado que quando dormimos os gatunos e os lobos se desinteressam de nós, nos deixam tranquilos e atacam outras crianças noutra casa, mas os aparadores estalavam no silêncio, as cómodas gemiam, havia uma tosse de assassino em qualquer ponto das trevas
(na copa? na cozinha? no escritório?)
o meu pai no umbral a desligar o interruptor
- Só me faltava que um filho meu tivesse cagaço do escuro
eu enrolado debaixo dos cobertores para me defender dos ladrões, tão minúsculo que não dariam por mim se levantassem os lençóis, a segurar a urina na bexiga, a segurar o coração descompassado, a responsável da clínica a tocar-me nas costas, divertida
- É uma da manhã senhor engenheiro acorde faz tenções de se mudar para cá?


António Lobo Antunes, "O Manual dos Inquisidores", Publicações Dom Quixote, 1996

* O título do excerto é da minha responsabilidade

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